Tenho lembranças do meu pai contando histórias de quando num tempo fora cabra, (jagunço) noutro da volante, mais tarde vaqueiro. Dizia que era uma forma de sobreviver no sertão de 1930.Levantava a camisa e mostrava as marcas de perfurações a bala e punhal e o dedo mindinho em riste por ter perdido o nervo, ao momento de segurar uma faca que ia para seu peito quando de uma paquera num forró. O homem era o bicho. Nunca vi sertanejo mais disposto a tudo como Antônio Aurélio Marques Sarmento. O homem era um dinossauro na força, na palavra segurava muita gente numa roda, picando fumo de rolo com sua faquinha que levava na cintura acompanhado da branquinha que lhe soltava a língua e a mente. As palavras saiam ao seu modo, por ser analfabeto mas, os mínimos detalhes das histórias não deixava com reticências. Ou cabra meio mundo de homem. Era pau de dá em doido meu pai.São lembranças da infância de uma criança criada em meio à roda de sertanejos, tão fortes como descreveu Euclides da Cunha em os sertões: "o sertanejo é sobretudo um forte".Morreu aos oitenta e oito anos. Fiquei sabendo indo filmar. Estava na marginal indo para os estúdios da film planet na Barra Funda. Não pude ir dar o último adeus.Que pena! O tenho em memoria em vida, cheio de vida, mesmo com a vida dura que levava como operário do DNOCS e uma renca de filhos homens para criar. Ficou muito emocionado quando levei meus filhos para visitá-lo antes da morte, bem como o vi chorar quando me despedi para voltar pra esta selva chamada São Paulo. Lembro-me de que, quando bebia ficava valente, mas um valente mais para chamar atenção e dizer, "ninguém vai me segurar?" Não sei por que, eu entendia que o velho tinha certo preconceito contra negro, porém tinha alguns como amigos para ir à caça nas noites das sextas-feiras ou sábados ou para farra. Chegava no outro dia com peba, tatu, gambá, até cobra de veado enrolada no pescoço, morta, e os cachorros farejando caminhos. Picareta, pá, espingarda e facão pendurados no corpo de roupa imunda e aos fiapos. Esta é homenagem ao velho que deve tá em algum lugar do mundo dos mortos, se ao lado de deus ou do diabo, não sei, por ter tirado a vida de concorrentes nas tretas das trincheiras do sertão por ocasião do cangaço ao lado de Chico Pereira um tempo, ao lado da volante noutro.Era uma questão de vida ou morte, mas que faleceu, isto sem dúvida, e que viveu, sem dúvida, e está na minha lembrança e na minha gene, sem dúvida.
Zé Sarmento
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