quarta-feira, 29 de abril de 2020

AQUI TEM HISTÓRIA - A MÃE



AQUI TEM HISTÓRIA- MINHA FINADA MÃE
Dos oito filhos que escaparam e viraram adultos, sou o quarto, e o mais parecido com minha mãe, Dona Francisca Marcelino Sarmento. 
Trabalhou muito pra cuidar de 9 homens. Era a mulher de uma casa, nos invernos muito pobre, nas secas intermináveis miserável. 
Vivíamos num tempo/espaço amparado por costumes machistas, imagine como não era. 
Casou-se aos 17 anos. Meu pai Antônio com 42. Depois de viver intensamente os colóquios, percalços, violências e estéticas sertanejas na região de Sousa, Antônio achou que era hora de se encostar num canto e maneirar os ditames de uma vida esmagada pelo latifúndio, cangaço, violência e seca. 
Decidiu pedir a mão de minha mãe em casamento. 
O agricultor Antônio Marcelino, o futuro sogro, achou por bem entregar a filha, antes que ele a roubasse e fugissem num cavalo pangaré de casa numa noite de lua cheia branqueando a caatinga. Afinal, eram primos, e nada há de mais seguro dar uma filha menor em casamento a quem já o conhecia. 
O noivo era pau pra toda obra e muito vivido na valente e montaria de amansar burro brabo, na briga de punhal e na segurança de disparar munição de rifle papo amarelo em cima de condenados a morte por desavenças de arrombo de cercas e roubo de gado. 
De tão interessado no casamento, o sogro emprestou, de pronto, pequeno pedaço de terra do seu lote à beira de um açude para o genro fazer sua roça de coivara. Era preciso, ao se enlaçarem no padre e no cartório, o casal daqueles tempos possuir seu canto para se amarem e fazer filhos a qualquer tempo nas noites de amor que entregaria ao sertão muitos rebentos no futuro. 
A tapera de taipa erguida pelo noivo Antônio no descampado, também recebeu mãos febris e pés socando barro para encher o entrançado de varas e forquilhas por parte da família de minha mãe Francisca.
Um alpendre para receber cadeiras de balanço para se refrescar no calor sertanejo e acentos de toras de madeira davam segurança nas conversas de visitas, uma sala, dois quartos e uma pequena cozinha dariam as caras pela fumaceira produzida no estalar da lenha ainda verde cozinhar o básico. 
Logo a casinha pequenina de taipa no alto de uma pirambeira recebeu o casal. 
Num canto da sala alguns sacos de milho, feijão, um pouco de arroz em casca, alimentos colhidos na roça pela chuva ter se segurado por meses. 
Uma cama de casal de vara da flora sertaneja, forrada com colchão de junco começou se balançar no movimento do casal aprontando a chegada do primeiro rebento. 
Uma mesa e dois tamboretes, um pote, uns pratos de barro, uma quartinha para levar água para o roçado, duas redes para armar em qualquer cômodo, uns panos para cobrir o corpo, umas plantinhas para produzir xaropes e florinhas em frente a tapera foram suficiente para começar nova vida, e esperar o primeiro de muitos filhos. 
Como naquela época dos anos de 1950 não tinha rádio, televisão nem jornal, a diversão para diminuir as preocupações com o futuro, era se amarem intensamente e imitar todos casais do sertão, fazer filhos até perderem o poder da reprodução. 
Dez vieram ao mundo, oito escaparam, e cada vez que um nascia, coronéis do latifúndio pipocavam no ar muitos foguetes, pela certeza da continuada mão de obra barata para a manutenção das suas terras. Com o correr dos anos dos pós-guerra, São Paulo foi a saída pra fuga de rapazes marcados por costelas aparentes migrando para os grandes centros urbanos. Zézito foi um deles. 

AQUI TEM HISTÓRIA - DE PESCADOR


AQUI TEM HISTÓRIA – DE PESCADOR
Às sextas-feiras da paixão lembro minha mãe Francisca cobrando pescados do meu pai. Antônio. Peixe, peixe, home! Num vê que é dia santo!
Fosse atrás dos pescadores do açude que irrigava o vale de um verde que o embelezava nos bons invernos.
Alguns homens tiravam seus sustentos das águas calmas do açude. Deslizavam canoas com movimentos de fortes braços, através de remos. Direcionavam-se aos lugares onde podiam jogar tarrafas, galões e anzóis com as manhãs frescas se descortinando para o calor. Por experiência, se direcionavam aos lugares  mais rasos, ou próximos as locas de pedras em que a água não era tão fria. Lá os peixes achavam mais alimento, como  achavam eles as redes e anzóis dos experientes pescadores.
As fieiras nos cipós não recebiam apenas um tipo de peixe, seguros pela goela. Tinha traíra, apanharí, piau, corimba, piranha, tucunaré. Esse último peixe de cor amarelada listrado com preto era o mais caro, por ser o mais procurado para descer por goelas famintas de trabalhadores que ganhavam melhor salário. A maciez da carne sem espinhas desse peixe o fazia famoso, bem mais aqueles que tinham mais tempo para ficar maiores. O hotel catete, restaurante chique da vila de funcionários públicos do DNOCS, que já recebera presidentes como Getúlio Vargas e Lula, adquiria, a bom preço, os peixes mais nobres e maiores. Para as casas dos humildes trabalhadores do eito, sobravam os peixes que mais cuidados exigiam para comer, as espinhas das suas entranhas acabavam engasgando os mais gulosos. Aja farinha seca e murro nas costas para fazer o sujeito voltar a respirar. A fé em Jesus também o salvava, sua imagem pregada na cruz era exemplo de resistência e lealdade para os humildes homens do campo.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

AQUI TEM HISTÓRIA - VIVÊNCIAS


AQUI TEM HISTÓRIA
HOJE SOU OUTRO.
PORÉM NEM TANTO.
Fui criado numa comunidade de funcionários públicos chamado "perímetro irrigado de São Gonçalo", Sousa, PB. Região que acabou abrindo sorriso nalguns por ter ganhado um grande açude, inaugurado em 1936 pelo então presidente Getúlio Vargas. Irrigar o vale no meio do semi-árido sertanejo seria prioridade. A fome não era adjetivo, era verbo e este verbo era conjugado pelo conjunto de forças que, de tempos em tempos, se aprimoravam em dizimar o ser humano, empregado pela natureza e os coronéis que escolhiam quem ganharia sobrevida cuidando de suas terras como jagunços e cabras da peste. Hoje é conhecido como "Vale dos Dinossauros". Era um meninote tão pobre que tinha vergonha de passar pela rua 16, a principal da vila, na qual moravam os funcionários que ganhavam melhores salários e se sentiam a classe dominante do lugar por, de certo modo, poderem usufruir de um modismo do momento e se vestirem melhor e frequentarem escolas, inclusive entrar em faculdades públicas e garantir emprego público arranjado depois de formado pelas famílias que mandavam na administração pública do Estado e do Nordeste. Quando maçons se arranjavam mais depressa, os religiosos batistas também. Demorei muito ao chegar em Sampa em 1977 pra perder a vergonhas de ser pobre e enfrentar meus demônios interiores da inferioridade, sem perder a humanidade e humildade. Até hoje ainda tenho receios de entrar num shopping com as parafernálias da modernidade, cheios de segurança e luzes e vidros e poder opressor econômico em que sinto enfiarem dentro de mim a lâmina pontuda da descrença da divisão do bolo que cresceu e não foi repartido, por achar que vou ser parado para averiguação ou acompanhado por um segurança vigilante nas minhas ações. Isto não é ficção, é fato!! A um tempo, ao entrar no shopping vila Olímpia para ver locação de um filme reclame, isto aconteceu, então só fui largado de ser seguido pelo conterrâneo segurança, depois que passei a cumprimentar profissionais da equipe do filme que íamos filmar numa loja de eletrônicos.

AQUI TEM HISTÓRIA - DE SOBREVIVÊNCIA


AQUI TEM HISTÓRIA – DE SOBREVIVÊNCIA INICIAIS NO AUDIVISUAL
Hoje me peguei revivendo sobre minhas vivências profissionais com as equipes de cinema, logo no início da minha profissão no audiovisual. Do modo como algumas pessoas diziam, caçoando sobre o nordestino novinho que vinha tentar a vida aqui, tipo minha figura, de sobreviver aos tempos de seca braba comendo caças locais. Os profissionais mais gabaritados, espertos, diziam: vem cá, comedor de calango, me ajuda nisso ou naquilo! Engolia seco pra não entrar em conflito ou, às vezes, dava risada me segurando por dentro pra não explodir e confrontar o racista. Digo, não tinha muita noção de tudo que tenho hoje, das ondas nefastas do preconceito, do bulling, adquirido esses saberes com vivências e estudos e pesquisas e leitura. Quero dizer sim, racistas, as caças caiam fervilhando entrando pela boca, descendo para o estômago para encher as tripas, e praticava grande alegria pra quem estava prestes a desmaiar de fome. Como mistura era a salvação. Quando havia tempo de falta de quase tudo em casa pelas secas prolongadas, a salvação pro menino e os outros membros da grande família pra se alimentar, e ter como mistura, pra não ficar só no feijão e arroz e farinha, eram as caças, sim! Saíamos envenenado pra cima delas nas veredas sertanejas, do tipo preá, peba, tatu, tamanduá, teiú, camaleão, gambá (essa caça, gambá, minha mãe tinha experiência em tratá-la bem, pra que ela não ficasse com o fedor do seu xixi na carne, nem aos derredores do oitão da casa.
Das aves, quando as lagoas eram formadas nas cheias, os adultos iam com suas espingardas pra cima dos paturís, socós, galinhas d'água, (bacurau não, esse pássaro era muito escaldado e era ave presunçosa por saber se camuflar) codorna, codorniz, arribação, rolinha caldo de feijão, pássaro de arroz, esses caiam com os disparos das espingardas de socar ou cartucheira.
Quando o inverno se segurava por meses, a produção de alimento nas roças de coivara, nos baixios e grotas aliviava a aflição do sertanejo. Fui um menino danado na enxada ajudando meu pai a preparar a terra, plantar, limpar, catar e debulhar. Dela colhia milho verde, feijão verde, (depois maduros e secos) jerimum, arroz, mandioca, gergelim. No final do inverno, quando este era de primeira a alegrava a vida sertaneja, alguns sacos de algodão eram colhidos. Produto que branqueava os campos, e servia pra fazer algum dinheiro, e meu pai e mãe trocarem algumas redes velhas por novas. Nunca dava pra dá um banho de loja em nenhum dos filhos renovando os panos do corpo, os calções de saco de açúcar continuavam a vestir os filhos costurados à mão por dona Francisca.Isso ocorria quando meu pai Antônio recebia alguns atrasados do DNOCS como funcionário operário padrão do sertão.