domingo, 6 de junho de 2021

O caldeirão fantástico de José Sarmento para nos lembrar das agruras do nordestino

 Linaldo Guedes

linaldo.guedes@gmail.com

Imagina Antonio Conselheiro, seca braba, imigração e realismo fantástico tudo junto e misturado num livro só. Imaginou? Pronto, é mais ou menos isso que você vai encontrar no livro “Os Miseráveis da Seca”, de José Sarmento, publicado pela Editora Filoczar. Lembram da canção “Caldeirão dos Mitos”, de Braulio Tavares, imortalizada na voz de Elba Ramalho? Então, é mais ou menos naquele tom que se desenrola o romance de autoria desse sousense radicado em São Paulo.

O livro tem um lado pretensioso. Sarmento anuncia que escreve a epopeia do sertanejo do Nordeste ao longo de mais de 100 anos de miséria, exploração e fuga da seca. Sim, parece pretensão dizer que o livro se pretende a isso, mas Sarmento consegue muito bem realizar seu intento. A obra tem como pano de fundo diversos acontecimentos que marcaram a história do Brasil, como a Guerra de Canudos e a Intentona Comunista, entre outros fatos históricos. Então, de certa forma ele realiza sua intenção, lembrando, em certos momentos, alguns filmes do neorrealismo italiano.

Mas o que prevelece com tintas fortes no livro é o realismo fantástico que envolve seus personagens. Principalmente da família protagonista. Como todas as famílias abandonadas pelo poder público no sertão nordestino que passam necessidade em função de seca e têm que se virar como se é possível para sobreviver, a grande família Silva não foge à regra, mas ela tem uma característica toda sua. É tão “fantástica”, que atrai as atenções de um circo. Afinal, qual circo não iria querer entre suas atrações alguém como José Divino Silva, que andava de cabeça para baixo? Ele mesmo, como narrador da trama, conta:

“Foi quando descobri a façanha e a astúcia que era andar de cabeça para baixo também profissionalmente. Formatado na esperteza pelo modo em que tudo começou, quando mãe me jogou no buraco e caí de cabeça para baixo e todos começaram a rir da minha desgraça.
“Tinha que resistir à fome, igual personagem de Mário de Andrade, Macunaíma, para resistir à discriminação nas urbes desse país que se modernizava”.

Mas não só Divino era sui generis. A família toda também atraía as atenções de agentes de circo. A mãe, por exemplo, comia feito uma lagarta e fazia do estômago um saco sem fundo, numa espécie de Dona Redonda de Saramandaia, a grande novela de Dias Gomes? No romance de Sarmento, muitos meninos e meninas da Grande Família Silva dormiam sem a ceia da noite para satisfazer a gula da mãe.

Um dos irmãos de Divino aprendeu a engolir espada. Outro irmão aprendeu a cuspir fogo, depois de encher a boca de querosene. Uma das irmãs chora lágrimas de sangue. Outra irmã mostra ter a vagina mais profunda do que de qualquer mulher e prova isso colocando um tronco grosso de aroeira dentro de suas partes íntimas. Um terceiro irmão engoliu dinamite e o fez explodir no intestino, e por ai vão as estranhezas fantásticas da família para agradar o agente do circo.

Claro que o realismo fantástico não é o mote do livro de José Sarmento. “Os Miseráveis da Seca”, como o próprio nome já afirma, é uma obra sobre a luta pela sobrevivência nos rincões nordestinos de uma grande família que vive à margem da sociedade. Por isso as estripulias de filhos e filhas, como assim fazem grandes personagens da literatura e da cultura nordestina, como João Grilo e Pedro Malazarte, entre outros. Ou o próprio Macunaíma, citado por Sarmento no início do livro.

Neste sentido, a obra de Sarmento é um estuário dos costumes, agruras e poucas alegrias dos sertanejos do Nordeste. Como as cantilenas religiosas e a miséria da população em geral, como é relatada neste trecho:
“Cortava o coração de pobre proprietário de pequenas terras ver crianças desbotadas, de olhos fundos da cor da morte, de face baça caveirada em desdita, de barriga esticada com a pele reluzindo ao sol pelos vermes estocados, parecendo mais carcaças humanas perdidas em meio a vendaval inclemente”.

José Sarmento é extremamente realista ao narrar as intempéries de quem vive na seca, dependendo de “favores” dos coronéis, que era quem mandava na região. Mas o autor também narra a alegria da chuva, da comida farta quando o inverno é bom, das brincadeiras de infância. “O sertão dá e tira, tira e dá, desde tempos imemoráveis”, afirma o narrador em várias passagens da obra. O livro fala de um Nordeste que já foi mais caracterizado nos romances e obras artísticas. Esse Nordeste acabou? Não temos mais coronéis, fome e sub-raças como antes? Será? Ou a miséria apenas foi modernizada e romantizada para ser consumida nas salas de cinema?

Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.