PRIMEIRA FASE
NO CÉU DE NASCIMENTO
CONTO 1
Casa humilde
abraçada por serra gigante para meu EU menino, era refúgio para uma família com
muitas crianças querendo mimo de braços de adultos e comida no prato de barro para
saciar a fome.
Uma escadinha no
tamanho dos moleques apontava a cada dois anos um óvulo fecundado com fervor no prazer de se amarem
abraçados na quentura das noites sertanejas.
O catre pocilga imunda de vara de marmeleiro amparava colchão de palha de junco, sempre pronto para
receber corpos se unindo para fazer novos filhos.
Meu eu menino tem
em memória a pobreza, muitas vezes base movediça para motivo de lágrimas no
rosto de minha mãe que chorava escondida dos filhos em algum canto mal-cheiroso,
roendo restos de unha carcomidas pela aspereza do sabão que retirava fedor de mijo
de trapos da miserável família.
Reclamações
impertinentes dos responsáveis pela quantidade de filhos, colocados no mundo
sem pensar nas consequências, não levava a fábrica da família fechar a linha de produção. Mesmo
vivenciando cotidianamente quão difícil
criá-los, continuava com a chaminé acesa soltando jatos de gozo
dentro de enorme ventre materno.
Estação sempre
aparecia de tempo ruim para o sertanejo selar o riso, bem mais que tempo bom
para lhe abrir às gargalhadas. Momento coisa-ruim não existia para a fábrica de
embrião humano perder tempo de galar óvulo e gerar mais filhos, prontos para no adulto
do futuro dos dias que corria sanguinolento, virar retirantes para algumas plagas
distantes. Muitas crianças nasciam concebidas nas noites de qualquer estação de
qualquer tempo com chuva, sol, mormaço. A solidão nas noites sertanejas era quebrada por dedos calosos bolinando corpo ainda
de pele macia de mãe, bem mais nova que meu pai.
Muito dos bens
dos bons anos de inverno desapareciam com pressa, pela seca castigar a terra,
gretar em fragmentos desalinhando o solo, e a face do sertanejo ser protagonista
das aflições causadas pelas estiagens.
A terra dividida
rachada em milhões de seguimentos formava um quadro surrealista, só vindo
virar arte-bela pela técnica da
fotografia, ou por mãos de ótimo artista do lápis ou pincel ilustrando sua
derrocada nos campos ignotos.
Terra pretumenta
nuns cantos largos do sertão, avermelhada noutras áreas imensas de massapé, dava nó em
visão de agricultor, quando o sol era o anteparo, e não as nuvens carregadas
pelos ilustres visitantes vapor d’água, santificados pelas orações aos santos
de devoção da população com São José.
Filhos pequenos
e maiores exigiam mastigar o que a terra produzia de suas entranhas, não dava
mais para viver de mastigar vento e sol e calor puxados para a boca nos sonhos
que a todos alumia.
Terra
segmentada, desamparada pelo desaparecimento das plantas viçosas e dos animais,
de solidão pela fuga do agricultor que migrava para outras áreas nas secas brabas,
deixando mulher e filhos no vazio dos dias mastigando calamidades produzidas
pelos coronéis que demandava poder de arbitrar barbaridades.
Tinha nela seu
sustento nos bons invernos, nos ruins, tudo sucumbia, dando pernas movimentar
para outras áreas do brejo, cariri ou alguma capital dos Estados do país em
desenvolvimento horizontal e vertical. A construção civil e as fábricas
dominavam o movimento dos paus-de-arara singrando estradas de terra sangrando carnes e mentes dos retirantes.
Produzia poeira
e dor algemando peito calafetado sem chave para abrir, as secas medonhas,
trazendo doenças e abandono às crianças sem amparo quando o leite materno
desaparecia da boca de muitas crias, pelas mães a cada ano receber nova cria em
ventre preparado para por no mundo muitos filhos sem destino traçado de como
sobreviver estudando os deveres nos cadernos que só a elite entendia que
merecia.
Filetes de
lágrimas escorriam no rosto pelos encovados canais das rugas dos pais, mais as mães, quando
negava aurora primaveril da cor do anil, tempo de inverno sem negação.
Tapera humilde
recebia nas noites úmidas, quentes que fossem, muitas redes estendidas com
corpos de jovens e crianças, mais os dois adultos casal em cômodo separado numa
cama, sempre se balançando impulsionada pelo movimento da máquina de fazer
gente, as redes os pés faziam o movimento quando dava de encontro a alguma
parede de reboco na casa de taipa.
Não tinha
televisão!!!
Casebre trepado
na solidão do alto do morro, segura por base sólida de granito, não entendia
quão difícil foi o transporte das pedras para a construção do açude logo acima.
Em companhia de
muitos filhos vindos de um só ventre, surgiam uma vez ou outra, homens do
governo com pulverizadores nas costas para branquear as paredes da tapera de
veneno, dizendo o responsável pelo evento, ser a mando de sanitaristas para
dizimar ovos de barbeiro.
Estavam matando
gente, dando prejuízo às finanças do governo, por gastar muito do bem público
com a doença de Chagas.
Informou o homem
de branco, não tivessem medo, não, podia as crianças partir pra cima e torar o
rabo das lagartixas, mais tarde apareciam de rabo novo, como as diabruras sempre se renovava para prolongar o sofrimento dos homens e dos jumentos, animais que serviam pra
jabá, depois de trabalhar tanto carregando peso no espinhaço para as trempes de
fogão a lenha, sacos de mantimentos colhidos nas roças e capim para os cercados
de varas que resguardava algum animal leiteiro.
O tempo por
aquela região do polígono das secas vivia de tempo ruim num tempo, de tempo bom
noutro, mas bem menor os bons tempos que os ruins.
Morcegos
encandeados pela amarela lâmpada do teto da tapera, alumiando feito ouro de
tolo, fossem chupar sangue de animais e não de meninos nas madrugadas, já não possuíam bons fluidos pra movimento, muitos de muitas famílias já se
achavam tortos pela desnutrição infantil.
Vaquinha presa
no cercado de arame farpado, não dava mais de alimentar os meninos pela falta
de verde pasto, choramingavam ao lado puxando o vestido querendo mimo e o leite
da mãe que também os peitos secaram.
Sorria e fazia
sorrir a vaquinha às famílias mais poderosas na economia de possuí-la nas
invernadas, por fresco capim a qualquer hora colhido em vazante nos descampados baixios que seguravam alguma umidade
mais prolongada.
Crianças muitas,
sustentadas na sua essência familiar pelo mais valente dos homens, davam
movimentar pelos matos e terreiros sem anteparo às pernas nuas e descalças
com barriga saliente pelos vermes
estocados, cachetes pra lombriga distribuídos pelos agentes de saúde, faziam mais tarde despejar os montes pelos
matos dos aceiros de casa.
Cabra macho pai
como aquele não existia, como muitos, cabra que num passado andou armado em
proteção de coronel poderoso e parentes politiqueiros do sertão.
Homem de passado
que se dispôs entocar-se nas brenhas das capoeiras, pra pegar de surpresa o
inimigo da política dos coronéis dos anos trinta. Derrubava jagunços dos
poderosos inimigos que queriam administrar o poder do sertão a seu modo, num piscar de olhos a mando do coronel.
Com tiro de
coiteiro certeiro com rifle papo amarelo, o inimigo de outra facção política,
de disputa por terra e derrubada de cerca, visitava o chão, lá ficando para sempre sem
bater as pestanas, nem saber de onde partiu a munição que o varou no peito e o
jogou ao chão.
De cem metros
alvejava o coração de ossos em movimento, sobre montaria, dizia o homem que um
dia, alicerçado pelo poder de matar e proteção de quem detinha poder, viveu
esse período do sertão do vale-tudo sem lei nos anos vinte e trinta.
Cabra que
atirava como ele garantia empregado com passagem e carta de alforria, liberdade
para viver acoitado em qualquer terra, de coronel poderoso, ou de político que lhe
desse proteção.
Quem tivesse
mais poder, o levava como protetor das sesmarias sem mais quais quais quais.
A tapera do cabra
pau pra toda obra suspensa por paus de aroeira da braba caatinga, com certeza de
prazer na hora do fazer muitos filhos, viu nascer dez rebentos, escapar oito
com vida sem vida, sem irmandade nem anestesia pra sarar as dores da agonia da
fome.
Com o tempo
viviam pulando feito potro brabo, sem arreio, pelo meio da tapera dispersa,
terreiro e adjacências, livres para fazer o que desse na telha recém nascida
infantil e junvenil. Não existia preocupação de encontrar pela frente, alguém
que os fizesse mal, além da fome e a quase miséria do entorno. O medo
amedrontava mais quando a mãe gritava: “entra pra dentro, menino, cuidado com o
papa figo”!
Pessoas de má
índole, diziam, pegavam criança pequena pelas capoeiras e arrancava o fígado
para vender às famílias de quem tinha gente com problema hepático e muito poder
em bens e dinheiro. Acontecia de ser assim, se a família tinha poder de
sobra pra pagar em partes ou a vista, a mercadoria retirada dos órgãos das
crianças pobres lesando distante dos terreiros de casa.
Medo dos ciganos
também fazia moleque se esconder nas brenhas, ou por baixo da saia de qualquer um
da família mulher. Roubavam o que aparecia de interesse, jogavam praga a quem
não ajudasse com esmola de caneca de grão de feijão, arroz, farinha, café,
galinha, peru, pato, pedaço de leitão, carne de sol ao sol secando, salgada para se proteger das moscas varejeiras que pousavam ovos e criava bicho feio
tapuru que dava engulho.
A tristeza maior
pra moleque vinha quando na hora do almoço, jantar, merendar, via no prato de
barro, feito pela vizinha artesã, o pastoso angu da cor de sangue que escorria
dos buchos de cabras arruaceiros, que mexiam com moça donzela e não se
sujeitavam a casar na polícia, por poder que o pai exercia nos desmandos. Faca,
punhal e bala faziam estrago no corpo de quem não impunha respeito.
Sentia que a
seca ressurgia, trazendo um pouco do purgatório, levando um pouco do céu para fora do prazer
que emanava dessa época de fartura, nas chuvas.
Abastança de
milho cozido, assado, pamonha, canjica ao sabor de canela em pau, desapareciam
nas estiagens prolongadas, era quando dava de crescer o bucho das crianças, pela
terra e bosta de animais virarem insumos em alimento.
Desaparecia nas
estiagens grãos como fava, feijão verde com nata nadando em caldo saboroso,
arroz novinho grudado por ser filhote de grão branquinho ou vermelhão, só
sobrava para alimento alguma farinha encaroçada nas vendas de espertos
comerciantes, feijão gorgulhento e milho bichado para o moinho triturar e virar
cuscuz, angu que fazia azia em goela que requeria mais substancioso alimento.
Colhidos da
terra de vazante, ou nos baixios que mais segurava água, surgiam com fartura
nas casas dos colonos e rendeiros todo tipo de legumes. Na chuvarada.
Fartura de
sorriso nos lábios preenchia cara de moços e velhos, só a terra tinha o poder
de produzir sorriso farto. Na chuvarada.
Arroz precisa de
água pra se segurar ereto, produzir com profusão, assim como o sertanejo, para deixar
de rolar na face, a água do seu interior e curvar-se à terra pra virar estrume
nas mãos de quem tinha algum poder estatal ou particular. Os coronéis.
As chuvas
traziam muita fartura e ainda segurava o agricultor no seu habitat, perdendo as
capitais do país mão de obra barata para as lidas nas construções e fábricas de
moer carne de gente deixando a alma demente.
A seca trazia
muitos desenganos para o sertanejo que, por causa dela, estava sempre preparado
para migrar como retirante.
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