domingo, 9 de agosto de 2020

AQUI TEM HISTÓRIA-O PAI

 


AQUI TEM HISTÓRIA - O PAI
Tenho lembranças do meu finado pai, desde as que pulsam com alegria e tristeza, admiração e aversão.Antônio Aurélio Marques Sarmento nasceu em 1908.Imagine como foi sua criação e a que legou aos oito filhos, todos homens. Imagina, né? Como analfabeto, era um bom contador de história do passado sertanejo.
Período em que o sertão era terra sem lei e o cipó de marmelo visitava sem dó o corpo de quem não obedecia suas ordens. A fervura abrasava impropérios. Nesse mote seguiu por muitos anos, até o Estado tentar desarmar os homens meio mundo de homem.
Antônio foi cabra da peste na juventude como vaqueiro, cangaceiro, agricultor de roçado de coivara, soldado da volante na revolução de 1930, operário do DNOCS até se aposentar aos 65 anos. No tempo d'eu menino lembro que saia aos sábados a tardinha com o sol dando adeus ao dia e acariciando a noite para caçar com amigos, no domingo a família de dez pessoas tinha mistura como tatu, peba, tamanduá, gambá. Bichos da caatinga ranheta nos períodos de seca medonha eram enfeites pras vistas e nos pratos rasos davam melhor sabor ao arroz com feijão e farinha de mandioca ou de cuscuz.
Descrevia com entusiasmo na oralidade que embarcou no trem na cidade de Sousa sobraçado ao rifle papo amarelo para defender o Estado organizado e retomar a cidade de Princesa das mãos de Zé Pereira na revolução de trinta. Seu coração de jovem batia sem desalento por violência, como o de todos aqueles homens que faziam parte da dinâmica e estética daquele período no sertão.
Foi cabra de Chico Pereira. Este vivia em seu latifúndio com bandos armados na cidade de Nazarezinho.Também foi cabra de Otávio Mariz na cidade de Sousa, (este era seu primo e protetor quando jovem numa terra sem lei, e como médico, doutor Otávio curava suas feridas de bala, punhal, peixeira).
Participou de peito aberto da troca de tiro no entrevero em que parte do bando de Lampião, em conluio com o de Chico Pereira, invadiu a cidade de Sousa para matar Otávio Mariz, seu primo, pelo fato de numa tarde de bebedeira, este ter chicoteado o corpo de um dos cabras do inimigo coiteiro de muitos assassinos. Antônio Aurélio (meu pai) narrava façanha desse encontro entre invasores e defensores, quando foi alvejado com balaço de rifle. Esse tiro de bala mais alongada, não o levou a morte. Era forte. Inclusive tornou-se meu pai. (Risos).
Sentia orgulho em ter trocado tiro contra esse bando nas areias do rio do peixe e conhecido Livino, irmão do rei do cangaço Lampíão.
Sábias lembranças sobre tretas atrevidas em violência, com muita morte, muitas histórias medonhas, inclusive de assombrações, de almas penadas, sabia narrar, quando por sua garganta passava umas talagadas da branquinha marvada. Contava que um dia tomou surra de uma caipora, por não ter fumo para doar. 
Das brigas nos forrós que participou e teve que fugir numa noite sem o clarão prateado da lua, ao momento que estava dançando com uma donzela, e um cabra o abordou e o convidou para tomar uma pinga num balcão improvisado com estacas e varas da flora da caatinga.
Desconfiado do convite, permaneceu esperto, quando levou a pinga à boca e viu o brilho da lambedeira partir em direção a seu bucho. Conta que deu tempo de segurar a lâmina com uma mão que perdeu o movimento do dedo mindinho. Mostrava o dedo em riste que não se curvava como os bravos sertanejos do período de 1920/30. As sangrias na jugular que ocorriam nos cabras safados nunca teve coragem de fazê-lo pessoalmente, (era o que dizia) mas assistiu homens do cangaço ou da volante enfiar sem dó o punhal na jugular do covarde entreguista olheiro do inimigo. Assim era o sertão dos então coronéis donos do poder da terra e do dinheiro do Estado que para lá ia para combater a indústria da seca.
Nunca contou que algum cabra ficou estirado sem bater pestanas por suas mãos. Isso ele não assumia. Dava risada enfadonha e logo tomava outro rumo a prosa quando mais uma talagada de cachaça passava pela goela e o cigarro de fumo de rolo picotado a faca, recebia  brasa do tição de aroeira para acender. Pra todos mostrava as cicatrizes dos ferimentos a bala, faca, punhal que rasgaram sua carne por todo esse período do bravo sertão.
Entrar a cavalo cutucando a montaria na esporta, com companheiros de arruaças nas festas da classe dominante, o fazia verter lágrimas depois dos 70 anos de idade. Atenção e locução compreendida por mim no traçado da suas longas vivências e histórias, quando lá voltei, depois de 7 anos fora do seu convívio.
Antônio escapou por sorte desse tempo nevrálgico sertanejo.
Aquietou-se das bravatas, bebedeiras, arruaças e putarias, quando aos 42 anos foi procurar sua prima com dezessete anos, (minha mãe Francisca) e pedir ela em casamento. Foi quando se empregou no DNOCS para a retomada da construção do açude na região onde nasceu, viveu e morreu no distrito de São Gonçalo, Sousa, PB.

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