AMOR ESBAGAÇADO
Texto para teatro
Autor: Zé Sarmento- Texto dos anos 80, inédito em tudo.
CENARIO:
Sala de estar de pequeno apartamento nas
bordas de São Paulo.
Pedro, homem de uns 40 anos, corta anúncios
de emprego nos classificados. Sentado no sofá com o jornal sobre uma mesa de centro, fala.
PEDRO- Todo dia essa mesma merda! Enche os
culhões ter que procurar novo emprego! (pausa) Esse não serve... Esse também
não... Esse não... Esse sim...! Esse serve. Porra, até que enfim achei um que é
minha cara!!!!
(Pega um copo sobre a mesa de centro e bebe
uma golada de café. A campainha toca, olha no relógio dando a entender que não
espera ninguém).
PEDRO - (Se levantando) Quem será a essa
hora? Não tou esperando ninguém...
(Olha pelo olho mágico, em seguida abre a
porta. Entra mulher de uns 50 anos com uma enorme mala na mão, é a sogra do
Pedro).
SOGRA - Bom dia genro!
PEDRO - Bom dia sogra!
SOGRA - (Olhando em volta, se encaminha até
uma porta que dá acesso ao corredor). Cadê os meninos?
PEDRO - Na escola, né! Você não queria que
eles tivessem aqui às nove da manhã, correndo pelos cômodos da casa me enchendo
o saco!
SOGRA - Filhos foram feitos pra ser
suportados...Fabricou, aguentou! Na hora do vamo vê, do bem bom, ninguém tá nem
aí pra preocupações, depois que nasce, quer fugir da responsabilidade. Nada
disso, é nessa hora que se mostra o espírito do verdadeiro pai, trabalhando
para educá-los e criá-los com responsabilidade! (Pega a mala e sai de cena pela
porta que dá acesso ao corredor).
PEDRO - (Falando para o público) Com essa
coroa dentro de casa, não vai dá certo!
SOGRA – (Voltando para a sala) Veja a minha
filha, tá no emprego desde que começou nele...E foi o primeiro! (Sai de cena
novamente e entra numa porta que dá acesso ao banheiro).
PEDRO – (Mais uma vez envolvendo a plateia)
Eu aguento a filha me humilhando todo
dia e ainda vou ter que aguentar essa coroa, não vai dar certo! (Escuta-se
barulho de descarga do vaso sanitário).
SOGRA – (Saindo do banheiro) O chefe a
considera a melhor enfermeira do hospital...
PEDRO – (Chacoteando a mulher) Só se for melhor
de bunda!
SOGRA – Você nasceu, cresceu, virou homem e
permanece com a mesma atitude cínica e machista. Ela é a melhor mesmo em tudo.
Não é à toa que ela faz hora extra todo dia pra melhorar o salário e trazer
sustento pra essa casa.
PEDRO – Enquanto isso os meus galhos vão
crescendo e puxando minha cabeça pra frente, já tá me dando até dores lombares.
E falando em salário, ele tem que ser bom no tempo normal de trabalho e não se
escravizando 16 horas por dia dentro de um hospital, onde a única visão são corredores
lotados de gente com ossos esmigalhados, corpos moídos e lágrimas escorrendo
dos que ainda tão vivo em visita!
SOGRA – (Olhando para o que ele estava
fazendo) Tava procurando mais um emprego, é...?
PEDRO – (Acabando de tomar o último gole de
café, entra pela porta da cozinha) É! Tava procurando um que pague bem, pelo
menos melhor do que o último que eu trabalhei, onde me pagavam uma miséria!
SOGRA – Se você continuar procurando salário de
engenheiro como técnico, minha filha continuará lhe sustentado pro resto da
vida! (Entra na cozinha, os dois se chocam na porta. Pedro volta sem a caneca).
PEDRO – (Mais uma vez envolvendo a plateia) Tou
falando, com essa coroa aqui dentro não
vai certo. Vocês não conhecem essa jararaca, gente!
SOGRA – (Voltando da cozinha) Salário bom é
pra quem é formado, bem entendido, formado fora do Brasil com inglês e MBA. É
só mostrar o diploma, tá com salário alto garantido! Você não é formado, é?
PEDRO – Você sabe que não. Você sabe que sou
um simples técnico em manutenção de trens do metrô e o desemprego me pegou pela
greve que emplacamos.
SOGRA – Você sabe que nesse país greve nunca
levou trabalhador a melhorar salário, é tudo ilusão da correção monetária,
gatilho que dispara reposição da inflação.
PEDRO – Em compensação, o metrô tá com vários
carros parados, sucateados por falta de mão de obra qualificada pra reparar o
equipamento e má administração desse governo inapto e arrogante. Elas por elas!
Que você acha dos tempos de hoje, em? Acha que todo mundo quer ser operário,
em? Todo mundo hoje, mesmo sem saber ler ou escrever, quer ser ator de novela,
trabalhar com propaganda, ser artista de cinema televisão, lotar teatro com
piadas sem graça! Ninguém quer ser mais operário de porra nenhuma, todo mundo
quer grana fácil!
SOGRA – Quem manda ser de um país onde a
maioria das pessoas não tem dinheiro nem pra tomar um cafezinho, quanto mais
sair de casa pra fazer um passeio cultural. O que resta, é ficar em casa vendo
as novelas ou outro tipo de programa que enche a cabeça do pobre de sonhos e
riqueza e poder! Os realitys shows estão aí escancarados pra provar. (Acaba de
falar entrando novamente ao banheiro).
PEDRO – (Para a plateia) Pelo menos num ponto
ela concorda comigo.
(Se escuta novamente a descarga).
PEDRO – (Para a plateia) Parece que essa coroa
amanheceu com a bexiga hiperativa!
SOGRA – (Saindo do banheiro) Você não vai
pegar os meninos, eles não saem mais ou menos essa hora?
PEDRO – Sim senhora, eles saem às 12 horas,
mas já são bem grandinhos para saberem chegar em casa sozinhos. Filhos não
podem ser criados agarrados às pernas dos pais, como fossem carrapatos, é
melhor aprender desde pequeno que a vida é cheia de descaminhos.
SOGRA – Você é louco, com essa onde de
sequestro que tem havido por aí.
PEDRO – Fique fria, seus netinhos desse mal
não morrerão. Só passam por esse prazer de aparecer na televisão, os filhos das
famílias que têm dinheiro. Nós não temos onde cair mortos... E sequestrador não fica na tocaia em frente a escola pública. Eles vão pra frente
do objetivo ou outras escolas famosas que existem por aí. Só pegam filhos de
bacana, da elite que explora os trabalhadores dessa terra...E de todo mundo!
SOGRA – Dá dó ver os bichinhos magrinhos,
rasgadinhos, com a cara toda sujinha, aparecendo chorando aos prantos, com a
família abraçando e a câmera da globo em cima mostrando para o Brasil todo.
PEDRO – É uma forma de também saírem do
anonimato.
SOGRA – Eu só gosto de ver no outro dia,
quando a criança aparece limpinha, bem penteada, sorrindo da janela no colo da
mãe ou do pai e a parentada inteira atrás para sair no enquadramento como
papagaios de pirata.
PEDRO – Eu gosto mais do drama que o repórter
faz, principalmente quando é filho de gente famosa, eles começam: o seqüestro.
Depois: o cativeiro. Adiante: a perseguição. O reencontro... Me deixa
arrepiado!
SOGRA – É o cachê mais caro pra fama, sequestro... Mas eles podem ser assaltados!
PEDRO – Eles quem...?
SOGRA – Os meninos!
PEDRO – Fique calma, eles só andam com a
roupa do corpo...
SOGRA - ... Mas... e o tênis?
PEDRO - ...ih! Mas sujos e velhos que o nosso
transporte coletivo, os aparelhos dos hospitais públicos, a cabeça dos nossos
políticos, da nossa gente burguesa!
SOGRA – Você acha que o mal só acontece na
casa dos outros?
PEDRO – (Indo
até a gaveta do armário) Eu há anos vivo preparado pro que der e
vier.(Gesticulando com a arma em punho, na direção dela. Ela tenta sempre sair
da direção da arma) Afinal, a gente mora em São Paulo, nos arredores
periféricos da cidade, esse hemisfério lépido, trépido, cidade dos heróis
anônimos e bandidos conhecidos dos vizinhos que vivem de zíper nos beiços por
medo de represália. Povo mudo, surdo e cego, por puro terror e insegurança!
(Dispara para cima).
SOGRA – Você
ficou louco! Entenda que o povo não entrega os bandidos, porque são protegidos
por eles, a polícia quando existe, é para
proteger as classes favorecidas, esquecendo-se da ferida que deve ser sarada no
intestino dos pobres.
PEDRO – (Para a plateia) Mais uma vez essa coroa
concorda comigo, isso não vai dar certo! ( Se encaminha até o armário para
guardar a arma).
SOGRA – Você
tá pensando que eu também não entendo de pobre! Não é porque eu fui bem de vida
até anos atrás, que não entendo de pobreza. Eu não sou uma alienada dos salões
de cabeleireiros e manicures caros como você pensa. Só fiquei viúva, não morri!
Este corpo ainda armazena lenha e tá sequinha, pronta pra ser queimada, receber
novas emoções, se umedecer e derreter todo!
(A campainha
toca, Pedro vai até a porta, olha pelo olho mágico e abre, recebe uma
correspondência, assina, devolve a caneta e um papel, agradece e fecha a porta.
Lê a correspondência e aos poucos vai pulando de alegria).
SOGRA – Que
foi, enlouqueceu de vez, viu periquito verde?
PEDRO – (Beijando
a correspondência) Eu sabia, eu sabia, eu sabia que eles não sobreviveriam sem
os meus conhecimentos técnicos! Eu sou um trabalhador que sabe das suas
tarefas, que sabe e conhece o equipamento. Eles não são loucos de pôr os vagões
do metrô pra rodar sem manutenção diária
ou sendo feitas por burocratas. Eles não são loucos! Fomos readmitidos,
vamos voltar a trabalhar!
SOGRA – É bom
você correr se não eles vão mudar de ideia!
PEDRO – (Anda
pela sala pensando, pensando...)
SOGRA –
(Observando-o, depois fala para a plateia) Não tou falando que o animal tá
ficando louco, pirou de vez, é?!
PEDRO –
Pensando bem... Pensando bem... Sabe que hoje eu vivo muito melhor do que
quando eu era empregado, aquela merreca nunca me deixou viver, sabe que hoje eu
vivo muito mais?
SOGRA – Claro,
sendo sustentado pela mulher!...Não tou lhe entendendo!
PEDRO – Não
quero mais esse emprego. Não vou, não quero! Eles vão ter que me dar valor. Vão
pra puta que pariu! Eles vão ter que pagar muito mais, se me quiserem de
volta. Eles vão ter que me pagar salário de engenheiro! Afinal sou eu quem ponho
a mão na massa e já que ninguém quer ser mais operário, todo mundo quer cargo
de chefia, eu só vou pelo dobro do salário. Que se foda!
SOGRA – Você
ficou louco, não pensa em sua mulher, o quanto ela segura a barra e despesas
dessas casa? Minha filha anda trabalhando muito!
PEDRO – Os
tempos mudaram, a mulher ganhou há muito a liberdade que desejava depois de
tanta luta, então porque também não responsabilidades fundamentais? Sustentando a casa, fazendo
supermercado, comprando material escolar para os filhos. Até hoje, o dinheiro
da sua filha, só deu...Olha, e isso com hora extra e tudo... Só deu para os
salões de cabeleireiros, butiques. Parece até rica. Pro seu governo, nem tênis
pros filhos ela tem coragem de comprar. O dinheiro dela é capim seco num verão
de rachar a terra, é torrado em segundos!
SOGRA – Você
não pode falar assim da minha filha!
PEDRO – Não
pinte sua filha como sendo a Irmã Dulce! Uma,
você vive afastado dela há muito tempo. Quando você tinha o seu marido,
não sabia nem o endereço daqui, aliás, tinha até medo de saber, falava que sua
filha tinha se casado com um fracassado, um coitado de um operário, que não
morava, se escondia. Mas aqui foi onde nasci, aqui cresci, e aqui estão meus
amigos, alguns enterrados por ladroagem, é certo, mas no fundo, este é meu
lugar! E lugar é lugar, é espaço construído com amizades. Com
história, lembranças, identidade!
SOGRA – Não
custa nada fazer um pouco de esforço pra tentar melhorar de vida, ter coisas
materiais não é pecado!
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