terça-feira, 20 de setembro de 2016

AMOR ESBAGAÇADO 1

AMOR ESBAGAÇADO
Texto para teatro
Autor: Zé Sarmento- Texto dos anos 80, inédito em tudo.

CENARIO:
Sala de estar de pequeno apartamento nas bordas de São Paulo.
Pedro, homem de uns 40 anos, corta anúncios de emprego nos classificados. Sentado no sofá com o jornal sobre uma mesa  de centro, fala.

PEDRO- Todo dia essa mesma merda! Enche os culhões ter que procurar novo emprego! (pausa) Esse não serve... Esse também não... Esse não... Esse sim...! Esse serve. Porra, até que enfim achei um que é minha cara!!!!
(Pega um copo sobre a mesa de centro e bebe uma golada de café. A campainha toca, olha no relógio dando a entender que não espera ninguém).

PEDRO - (Se levantando) Quem será a essa hora? Não tou esperando ninguém...
(Olha pelo olho mágico, em seguida abre a porta. Entra mulher de uns 50 anos com uma enorme mala na mão, é a sogra do Pedro).

SOGRA - Bom dia genro!

PEDRO - Bom dia sogra!

SOGRA - (Olhando em volta, se encaminha até uma porta que dá acesso ao corredor). Cadê os meninos?

PEDRO - Na escola, né! Você não queria que eles tivessem aqui às nove da manhã, correndo pelos cômodos da casa me enchendo o saco!

SOGRA - Filhos foram feitos pra ser suportados...Fabricou, aguentou! Na hora do vamo vê, do bem bom, ninguém tá nem aí pra preocupações, depois que nasce, quer fugir da responsabilidade. Nada disso, é nessa hora que se mostra o espírito do verdadeiro pai, trabalhando para educá-los e criá-los com responsabilidade! (Pega a mala e sai de cena pela porta que dá acesso ao corredor).

PEDRO - (Falando para o público) Com essa coroa dentro de casa, não vai dá certo!

SOGRA – (Voltando para a sala) Veja a minha filha, tá no emprego desde que começou nele...E foi o primeiro! (Sai de cena novamente e entra numa porta que dá acesso ao banheiro).

PEDRO – (Mais uma vez envolvendo a plateia) Eu aguento a filha me  humilhando todo dia e ainda vou ter que aguentar essa coroa, não vai dar certo! (Escuta-se barulho de descarga do vaso sanitário).

SOGRA – (Saindo do banheiro) O chefe a considera a melhor enfermeira do hospital...

PEDRO – (Chacoteando a mulher) Só se for melhor de bunda!

SOGRA – Você nasceu, cresceu, virou homem e permanece com a mesma atitude cínica e machista. Ela é a melhor mesmo em tudo. Não é à toa que ela faz hora extra todo dia pra melhorar o salário e trazer sustento pra essa casa.

PEDRO – Enquanto isso os meus galhos vão crescendo e puxando minha cabeça pra frente, já tá me dando até dores lombares. E falando em salário, ele tem que ser bom no tempo normal de trabalho e não se escravizando 16 horas por dia dentro de um hospital, onde a única visão são corredores lotados de gente com ossos esmigalhados, corpos moídos e lágrimas escorrendo dos que ainda tão vivo em visita!

SOGRA – (Olhando para o que ele estava fazendo) Tava procurando mais um emprego, é...?

PEDRO – (Acabando de tomar o último gole de café, entra pela porta da cozinha) É! Tava procurando um que pague bem, pelo menos melhor do que o último que eu trabalhei, onde me pagavam uma miséria!

SOGRA – Se você continuar procurando salário de engenheiro como técnico, minha filha continuará lhe sustentado pro resto da vida! (Entra na cozinha, os dois se chocam na porta. Pedro volta sem a caneca).

PEDRO – (Mais uma vez envolvendo a plateia) Tou falando,  com essa coroa aqui dentro não vai certo. Vocês não conhecem essa jararaca, gente!

SOGRA – (Voltando da cozinha) Salário bom é pra quem é formado, bem entendido, formado fora do Brasil com inglês e MBA. É só mostrar o diploma, tá com salário alto garantido! Você não é formado, é?

PEDRO – Você sabe que não. Você sabe que sou um simples técnico em manutenção de trens do metrô e o desemprego me pegou pela greve que emplacamos.

SOGRA – Você sabe que nesse país greve nunca levou trabalhador a melhorar salário, é tudo ilusão da correção monetária, gatilho que dispara reposição da inflação.

PEDRO – Em compensação, o metrô tá com vários carros parados, sucateados por falta de mão de obra qualificada pra reparar o equipamento e má administração desse governo inapto e arrogante. Elas por elas! Que você acha dos tempos de hoje, em? Acha que todo mundo quer ser operário, em? Todo mundo hoje, mesmo sem saber ler ou escrever, quer ser ator de novela, trabalhar com propaganda, ser artista de cinema televisão, lotar teatro com piadas sem graça! Ninguém quer ser mais operário de porra nenhuma, todo mundo quer grana fácil!

SOGRA – Quem manda ser de um país onde a maioria das pessoas não tem dinheiro nem pra tomar um cafezinho, quanto mais sair de casa pra fazer um passeio cultural. O que resta, é ficar em casa vendo as novelas ou outro tipo de programa que enche a cabeça do pobre de sonhos e riqueza e poder! Os realitys shows estão aí escancarados pra provar. (Acaba de falar entrando novamente ao banheiro).

PEDRO – (Para a plateia) Pelo menos num ponto ela concorda comigo.
(Se escuta novamente a descarga).

PEDRO – (Para a plateia) Parece que essa coroa amanheceu com a bexiga hiperativa!

SOGRA – (Saindo do banheiro) Você não vai pegar os meninos, eles não saem mais ou menos essa hora?

PEDRO – Sim senhora, eles saem às 12 horas, mas já são bem grandinhos para saberem chegar em casa sozinhos. Filhos não podem ser criados agarrados às pernas dos pais, como fossem carrapatos, é melhor aprender desde pequeno que a vida é cheia de descaminhos.

SOGRA – Você é louco, com essa onde de sequestro que tem havido por aí.

PEDRO – Fique fria, seus netinhos desse mal não morrerão. Só passam por esse prazer de aparecer na televisão, os filhos das famílias que têm dinheiro. Nós não temos onde cair mortos... E sequestrador não fica na tocaia em frente a escola pública. Eles vão pra frente do objetivo ou outras escolas famosas que existem por aí. Só pegam filhos de bacana, da elite que explora os trabalhadores dessa terra...E de todo  mundo!

SOGRA – Dá dó ver os bichinhos magrinhos, rasgadinhos, com a cara toda sujinha, aparecendo chorando aos prantos, com a família abraçando e a câmera da globo em cima mostrando para o Brasil todo.

PEDRO – É uma forma de também saírem do anonimato.

SOGRA – Eu só gosto de ver no outro dia, quando a criança aparece limpinha, bem penteada, sorrindo da janela no colo da mãe ou do pai e a parentada inteira atrás para sair no enquadramento como papagaios de pirata.

PEDRO – Eu gosto mais do drama que o repórter faz, principalmente quando é filho de gente famosa, eles começam: o seqüestro. Depois: o cativeiro. Adiante: a perseguição. O reencontro... Me deixa arrepiado!

SOGRA – É o cachê mais caro pra fama,  sequestro... Mas eles podem ser assaltados!

PEDRO – Eles quem...?

SOGRA – Os meninos!

PEDRO – Fique calma, eles só andam com a roupa do corpo...

SOGRA - ... Mas... e o tênis?

PEDRO - ...ih! Mas sujos e velhos que o nosso transporte coletivo, os aparelhos dos hospitais públicos, a cabeça dos nossos políticos, da nossa gente burguesa!

SOGRA – Você acha que o mal só acontece na casa dos outros?
PEDRO – (Indo até a gaveta do armário) Eu há anos vivo preparado pro que der e vier.(Gesticulando com a arma em punho, na direção dela. Ela tenta sempre sair da direção da arma) Afinal, a gente mora em São Paulo, nos arredores periféricos da cidade, esse hemisfério lépido, trépido, cidade dos heróis anônimos e bandidos conhecidos dos vizinhos que vivem de zíper nos beiços por medo de represália. Povo mudo, surdo e cego, por puro terror e insegurança! (Dispara para cima).
SOGRA – Você ficou louco! Entenda que o povo não entrega os bandidos, porque são protegidos por eles, a polícia  quando existe, é para proteger as classes favorecidas, esquecendo-se da ferida que deve ser sarada no intestino dos pobres.
PEDRO –  (Para a plateia) Mais uma vez essa coroa concorda comigo, isso não vai dar certo! ( Se encaminha até o armário para guardar a arma).
SOGRA – Você tá pensando que eu também não entendo de pobre! Não é porque eu fui bem de vida até anos atrás, que não entendo de pobreza. Eu não sou uma alienada dos salões de cabeleireiros e manicures caros como você pensa. Só fiquei viúva, não morri! Este corpo ainda armazena lenha e tá sequinha, pronta pra ser queimada, receber novas emoções, se umedecer e derreter todo!
(A campainha toca, Pedro vai até a porta, olha pelo olho mágico e abre, recebe uma correspondência, assina, devolve a caneta e um papel, agradece e fecha a porta. Lê a correspondência e aos poucos vai pulando de alegria).
SOGRA – Que foi, enlouqueceu de vez, viu periquito verde?
PEDRO – (Beijando a correspondência) Eu sabia, eu sabia, eu sabia que eles não sobreviveriam sem os meus conhecimentos técnicos! Eu sou um trabalhador que sabe das suas tarefas, que sabe e conhece o equipamento. Eles não são loucos de pôr os vagões do metrô pra rodar sem manutenção diária  ou sendo feitas por burocratas. Eles não são loucos! Fomos readmitidos, vamos voltar a trabalhar!
SOGRA – É bom você correr se não eles vão mudar de ideia!
PEDRO – (Anda pela sala pensando, pensando...)
SOGRA – (Observando-o, depois fala para a plateia) Não tou falando que o animal tá ficando louco, pirou de vez, é?!
PEDRO – Pensando bem... Pensando bem... Sabe que hoje eu vivo muito melhor do que quando eu era empregado, aquela merreca nunca me deixou viver, sabe que hoje eu vivo muito mais?
SOGRA – Claro, sendo sustentado pela mulher!...Não tou lhe entendendo!
PEDRO – Não quero mais esse emprego. Não vou, não quero! Eles vão ter que me dar valor. Vão pra puta que pariu! Eles vão ter que pagar muito mais, se me quiserem de volta. Eles vão ter que me pagar salário de engenheiro! Afinal sou eu quem ponho a mão na massa e já que ninguém quer ser mais operário, todo mundo quer cargo de chefia, eu só vou pelo dobro do salário. Que se foda!
SOGRA – Você ficou louco, não pensa em sua mulher, o quanto ela segura a barra e despesas dessas casa? Minha filha anda trabalhando muito!
PEDRO – Os tempos mudaram, a mulher ganhou há muito a liberdade que desejava depois de tanta luta, então porque também não responsabilidades  fundamentais? Sustentando a casa, fazendo supermercado, comprando material escolar para os filhos. Até hoje, o dinheiro da sua filha, só deu...Olha, e isso com hora extra e tudo... Só deu para os salões de cabeleireiros, butiques. Parece até rica. Pro seu governo, nem tênis pros filhos ela tem coragem de comprar. O dinheiro dela é capim seco num verão de rachar a terra, é torrado em segundos!
SOGRA – Você não pode falar assim da minha filha!
PEDRO – Não pinte sua filha como sendo a Irmã Dulce! Uma,  você vive afastado dela há muito tempo. Quando você tinha o seu marido, não sabia nem o endereço daqui, aliás, tinha até medo de saber, falava que sua filha tinha se casado com um fracassado, um coitado de um operário, que não morava, se escondia. Mas aqui foi onde nasci, aqui cresci, e aqui estão meus amigos, alguns enterrados por ladroagem, é certo, mas no fundo, este é meu lugar! E lugar é lugar, é espaço construído com amizades. Com história, lembranças, identidade!
SOGRA – Não custa nada fazer um pouco de esforço pra tentar melhorar de vida, ter coisas materiais não é pecado!

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